7.4.05

José Luís Peixoto

Ontem assisti a uma entrevista do José Luís Peixoto na SIC mulher e sendo ele o meu escritor preferido da nova geração, não pude deixar de ir copiar um texto já publicado noutro sítio para o partilhar convosco. Tenho todos os seus livros com simpatiquíssimos autógrafos onde poderia ir buscar um poema ou um trecho, mas desta vez limito-me ao copiar/colar.
(desculpem lá a vaidade, mas é realmente uma honra)


A OLAIA

É uma árvore que eu vejo daqui, da janela do quarto. A avó costumava vê-la, sentada na varanda. Ao fim da tarde, é uma árvore melancólica, segura à terra e ao tempo: anos como folhas a nascerem viçosas e a misturarem-se mortas na terra. É uma olaia no centro do jardim. Abraço o seu tronco muito forte, sinto o seu corpo de madeira de encontro ao meu, ao vê-la daqui, da janela do quarto. Hoje choveu e os pássaros só agora se distinguem. A serra, grandiosa, sussurra a sua voz de trovão às raizes da olaia. O céu passa, como tempo, como folhas tristes. Hoje é Domingo. Hoje não choveu e chegaram agora da missa. Diante da olaia, pousam as quatro irmãs para uma fotografia. Os homens sorriem. As quatro irmãs, tão novas, riem. A olaia estende os seus ramos caprichosos no vento para tocar a alegria nos cabelos das irmãs. Hoje não choveu. Hoje é Verão e férias. A avó acabou de se sentar na varanda. E a olaia tem mais ramos. Chegaram os netos. Não corram dentro de casa. Os netos correm na cozinha e no corredor e nos quartos todos. Os homens sorriem. As quatro irmãs dizem não corram dentro de casa, e conversam, e riem. Um raio de sol ilumina as quatro irmãs, sobre uma cómoda, diante da olaia, numa fotografia. Hoje choveu. Vejo a olaia daqui, da janela do quarto. A avó costumava vê-la, sentada na varanda. Sob a olaia está um banco de jardim, vazio de todas as pessoas que nele se sentaram, molhado, hoje choveu; um banco de jardim, muito velho, fechado no mundo que passou e a sentir a morte na memória. Entre as ervas, levantam-se rosas, rosas entre o verde, levantam-se rosas a dizer ainda cores vivas na tarde. A olaia espera. Ouço vozes vindas das fotografias e das paredes e de dentro das gavetas e de dentro dos baús, vozes enroladas em lençóis de linho, entre rendas antigas de avós de muitas avós da avó. Ouço a avó, sentada na varanda, e a luz nítida, calma do fim de tarde. Não corram dentro de casa. Os netos brincam na varanda. Choram às vezes, mas não choram a sério, fazem birras de criança e limpam as lágrimas no colo da avó. Ouço vozes na sala de jantar, ouço o serviço fino de porcelana na prateleira, ouço os pratos e os talheres. Conversam os homens. Conversam as irmãs. Os meninos jantam na sala. Sobre a copa da olaia, a noite cai como um sorriso. Ao centro da mesa, levantam-se rosas contentes e mais altivas. Na cozinha, no forno, a lenha arde serena em brasas mornas. Sei que hoje choveu. Da janela do quarto, vejo a serra misturar-se lentamente com a noite. Vejo a olaia, imóvel, a esperar sempre. Vejo um banco de jardim, vazio, a guardar um lugar na sua solidão. É uma árvore que vejo daqui. As suas raízes, longas, entranhadas e a rasgar o peito maciço da terra, são olhares que foram luz, num dia importante; são mãos que acariciaram outras mãos, sinceras num silêncio para nunca mais esquecer; são sangue. O seu tronco é esta casa e esta serra a ver nascer tantas vidas; o seu tronco, forte, são vozes a falar dentro de vozes. Os seus ramos são muitos silêncios espalhados, diferentes e espalhados pelo vento, num mundo onde hoje choveu. Passam nuvens no céu da noite, como tempo, como folhas tristes. É uma árvore que vejo daqui, da janela do quarto. A avó costumava vê-la, sentada na varanda.

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