29.4.05

Falo de casas desfeitas
nos materiais que as concebem
a cal os recantos as soleiras
o silêncio que as habita
e que durante as insónias
é um grito que pode fender as mobílias,

o tempo a passar como um réptil nesses lugares
onde confluem passos e memórias e cigarros

vivi sempre dentro dessas casas rodeado de casas
paralisado à entrada das portas
oprimido sob tectos
que nenhuma viga ou coluna suporta

casas que são só essas vigas e colunas
atravessadas pelas tempestades
e oferecendo ao sol a solidão dos pátios.


Manuel Afonso Costa (1949) in Os Últimos Lugares

25.4.05

Viagem à Namíbia (XV)

Safari - Dia 5
Aprox.
3,5hrs (250 km)
Acampamento no parque Damaraland

Os acontecimentos ocorrem em catadupa e o tempo livre para a escrita é tão pouco que nem dá para actualizar o diário. À noite, após o jantar, recolhemos às tendas e a fraca luz da lanterna junto com o cansaço convidam unicamente a uns arrumos no saco e ao revigorante sono.

Hoje não tivemos de nos levantar muito cedo, mas logo que chegaram os primeiros raios de sol acordámos. Muitos subiram ao morro para fotografar a paisagem ao nascer do sol.

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Tomamos o pequeno-almoço sob a vigilância de duas jovens da aldeia que visitámos ontem e depois de guardarmos o equipamento seguimos viagem em direcção a Damaraland com paragem numa pequena aldeia para nos abastecermos. Entro num supermercado e deparo com os produtos das multinacionais que também vendem na minha terra. Já lá vai o tempo em que entrar num supermercado no estrangeiro nos confirmava que estávamos noutro país e tínhamos dificuldade em encontrar os produtos, agora não, a globalização existe mesmo e as grandes empresas exportam e produzem em todos os continentes, com destaque para os fabricantes de produtos de higiene. Já não dá gozo procurar por entre os coloridos rótulos quais são as melhores bolachinhas do mercado.

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Atravessamos a ponte sobre o rio Huab, um dos maiores do país, que de momento está seco, e tentamos seguir viagem desviando-nos da rota programada para vermos elefantes, contudo mais à frente não conseguimos passar porque há um enorme charco que poderá atolar os veículos. A vegetação é cada vez mais escassa, as pedras predominam e parece que nos aproximamos a passos largos do deserto.

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Chegamos ao parque de campismo pela hora do almoço. Creio que estamos no dia mais quente de toda a viagem. Como não há árvores as tendas são montadas debaixo de toldos, o espaço é exíguo para podermos proteger-nos do calor, vamos praticamente dormir uns ao lados dos outros, espero que não ressonem muito durante a noite.

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Almoçamos e saímos de novo para uma visita ao aeródromo para que alguns possam desfrutar de um voo por estas paragens, contudo o tempo não permite que o avião levante e voltamos para trás, vamos até às margens de um rio à procura de elefantes, mas como o nível da água subiu temos de avançar por ele dentro a pé.

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As pedras não são simpáticas para quem não está habituada a andar descalça, mas é seguramente uma das melhores sensações desta viagem, um momento que não vou esquecer – de mochila às costas, calções, sapatilhas a tiracolo, chapéu na cabeça, rio acima, água quente, uma vegetação abundante nas margens e um rebanho de cabras a pastar.

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Dirigimo-nos de seguida até Twyfelfontein para observar as pinturas e gravuras na pedra arenosa (arenito). A famosa arte rochosa (rock art) que se encontra por todo o país e que aqui possui uma das suas maiores galerias. Muitas delas têm mais de 6000 anos e remontam à Idade da Pedra. Foram executadas por caçadores que retractaram os animais que ali se podiam encontrar mas que hoje já não habitam o local – elefantes, rinocerontes, girafas e leões. Nesta galeria há mais de 2500 gravuras. Subimos e descemos por entre as rochas de cor de tijolo, descortinamos quais os animais que estão gravados, tiramos e posamos para as fotografias, estamos felizes. Que bom é estar nesta terra de céu azul, calor intenso, dias grandes, de férias, e o trabalho lá longe, muito longe, numa ilhota no atlântico norte, cheia de nevoeiro, humidade, frio e dias minúsculos. Não me apetece voltar.

As formações rochosas desta paisagem são espectaculares, o parque de campismo, mesmo sendo pequeno é um mimo e preparamo-nos para o nosso último jantar em acampamento. Servem-nos o que de mais típico se come nesta terra – churrasco de carne de vaca e enchidos acompanhado com pirão, abóbora-menina e molho de tomate. A sobremesa é tarde de maçã.

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Eu e Josh, a espanhola, levamos quase todo o serão a falar dos nossos animais de estimação.

20.4.05

PRESENTE

deserto e maresia

17.4.05

Viagem à Namíbia (XIV)

Safari - Dia 4 (2)
Aprox. 4,6hrs (270 km)

Acampamento no parque da comunidade
Ova-Himba

A visita à aldeia promete ser algo de completamente novo. Estamos nesta terra há uma semana, mesmo que pareçam meses, e tudo o que temos visto é um país desenvolvido ao estilo ocidental mas parece que agora entraremos naquilo que habitualmente é conhecido por África profunda, com uma pitada de exotismo – o jovem branco eleito chefe da aldeia.

Distribuíram-nos uma fotocópia de um pequeno documento explicativo do que é a aldeia Himba. “Ainda em idade escolar, Jaco passava grande parte do seu tempo com os pastores Damara-Nama. Em 1997, começou a trabalhar como guia em Forte Sesfontein e teve o primeiro contacto com o povo Himba. Surpreenderam-no os métodos de cultivar a terra, a sua cultura e tradições. Nessa altura começou a aprender a língua Otji Herero e quando deixou de trabalhar neste local começou a trabalhar como guia free lancer no Campo Epupa. Aqui criou amizade com uma velha mulher Himba, que o adoptou na sua cultura e como filho. Através dela conheceu muitos outros Himbas. De volta à terra dos pais para trabalhar nos terrenos destes, continuou a trabalhar como guia junto dos Himbas. Um ancião sugeriu-lhe que levasse mulheres e crianças para o ajudarem a cultivar a terra. Estes então decidiram construir a sua própria vila naqueles terrenos e continuar com o estilo de vida semi-nómada, mudando para vários locais da quinta de acordo com a quantidade de erva disponível. Em vez de trabalhar como guia, Jaco passou a receber turistas no seu próprio terreno. O dinheiro que recebe destas visitas servem, essencialmente, para comprar medicamentos, embora considerem que os métodos de tratamento tradicionais é que devem ser usados e que os mais fortes é que devem sobreviver”.

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Jaco vem buscar-nos ao parque de campismo, veste uns calções largos, uma T-shirt que já foi branca, de pés descalços, com vários colares e pulseiras nos pulsos e tornozelos e um bordão que não serve unicamente para o apoiar, pois é demasiado jovem para isso, mas sim apontar. Faz-nos uma pequena apresentação da aldeia e essencialmente tenta colocar-nos à vontade. Hoje os homens que lá vivem estão fora porque umas vacas deram bezerro, mais tarde somos informados que não voltarão. Na aldeia só estão as mulheres, as adolescentes e as crianças.

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A primeira sensação é deveras estranha, parece que estamos a invadir um local e que estas pessoas pertencem a um outro lugar que não o nosso ou então que estamos perante uma representação circense, no qual eu me sinto terrivelmente mal. Estou certa que a sensação é comum a todos os outros. Dizem-nos que podemos fotografar mas não nos atrevemos, até que o Wolf começa a tirar fotos e porque nos sentimos bem recebidos tentamos dialogar com as crianças e as mulheres, mas eles só conseguem dizer adeus em inglês. Jaco prepara-se para lhes arranjar uma professora de inglês vinda da Europa, vai colocar uma núncio na net com a ajuda da irmã.

Aprendemos o modo de vida deles, das relações interpessoais, do que se alimentam, como procedem à higiene diária sem um pingo de água e da sua vontade em continuarem com um estilo de vida milenar, apesar de muitos da sua tribo terem há muito adoptado o estilo europeu. Vivem do que a terra lhes dá, da criação de gado e do artesanato que vendem.

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A aldeia tem um cheiro forte que se entranha em todos nós e que nos perturba – é um misto dos cheiros da terra barrenta e das cabras que ocupam o curral junto às palhotas.

Regressamos ao parque de campismo mas as imagens da aldeia, os sorrisos das mulheres e adolescentes, as brincadeiras das crianças, a cor de tijolo e o aroma intenso e único não nos largam. Não mais esquecerei este momento.

15.4.05

silêncio


um
pássaro

olhando:a

curva;
aresta,da
vida

(indagação antes da neve


E. E. CUMMINGS (1894-1962)
livrodepoemas

(tradução da nossa conterrânea Cecília Rego Pinheiro)

7.4.05

José Luís Peixoto

Ontem assisti a uma entrevista do José Luís Peixoto na SIC mulher e sendo ele o meu escritor preferido da nova geração, não pude deixar de ir copiar um texto já publicado noutro sítio para o partilhar convosco. Tenho todos os seus livros com simpatiquíssimos autógrafos onde poderia ir buscar um poema ou um trecho, mas desta vez limito-me ao copiar/colar.
(desculpem lá a vaidade, mas é realmente uma honra)


A OLAIA

É uma árvore que eu vejo daqui, da janela do quarto. A avó costumava vê-la, sentada na varanda. Ao fim da tarde, é uma árvore melancólica, segura à terra e ao tempo: anos como folhas a nascerem viçosas e a misturarem-se mortas na terra. É uma olaia no centro do jardim. Abraço o seu tronco muito forte, sinto o seu corpo de madeira de encontro ao meu, ao vê-la daqui, da janela do quarto. Hoje choveu e os pássaros só agora se distinguem. A serra, grandiosa, sussurra a sua voz de trovão às raizes da olaia. O céu passa, como tempo, como folhas tristes. Hoje é Domingo. Hoje não choveu e chegaram agora da missa. Diante da olaia, pousam as quatro irmãs para uma fotografia. Os homens sorriem. As quatro irmãs, tão novas, riem. A olaia estende os seus ramos caprichosos no vento para tocar a alegria nos cabelos das irmãs. Hoje não choveu. Hoje é Verão e férias. A avó acabou de se sentar na varanda. E a olaia tem mais ramos. Chegaram os netos. Não corram dentro de casa. Os netos correm na cozinha e no corredor e nos quartos todos. Os homens sorriem. As quatro irmãs dizem não corram dentro de casa, e conversam, e riem. Um raio de sol ilumina as quatro irmãs, sobre uma cómoda, diante da olaia, numa fotografia. Hoje choveu. Vejo a olaia daqui, da janela do quarto. A avó costumava vê-la, sentada na varanda. Sob a olaia está um banco de jardim, vazio de todas as pessoas que nele se sentaram, molhado, hoje choveu; um banco de jardim, muito velho, fechado no mundo que passou e a sentir a morte na memória. Entre as ervas, levantam-se rosas, rosas entre o verde, levantam-se rosas a dizer ainda cores vivas na tarde. A olaia espera. Ouço vozes vindas das fotografias e das paredes e de dentro das gavetas e de dentro dos baús, vozes enroladas em lençóis de linho, entre rendas antigas de avós de muitas avós da avó. Ouço a avó, sentada na varanda, e a luz nítida, calma do fim de tarde. Não corram dentro de casa. Os netos brincam na varanda. Choram às vezes, mas não choram a sério, fazem birras de criança e limpam as lágrimas no colo da avó. Ouço vozes na sala de jantar, ouço o serviço fino de porcelana na prateleira, ouço os pratos e os talheres. Conversam os homens. Conversam as irmãs. Os meninos jantam na sala. Sobre a copa da olaia, a noite cai como um sorriso. Ao centro da mesa, levantam-se rosas contentes e mais altivas. Na cozinha, no forno, a lenha arde serena em brasas mornas. Sei que hoje choveu. Da janela do quarto, vejo a serra misturar-se lentamente com a noite. Vejo a olaia, imóvel, a esperar sempre. Vejo um banco de jardim, vazio, a guardar um lugar na sua solidão. É uma árvore que vejo daqui. As suas raízes, longas, entranhadas e a rasgar o peito maciço da terra, são olhares que foram luz, num dia importante; são mãos que acariciaram outras mãos, sinceras num silêncio para nunca mais esquecer; são sangue. O seu tronco é esta casa e esta serra a ver nascer tantas vidas; o seu tronco, forte, são vozes a falar dentro de vozes. Os seus ramos são muitos silêncios espalhados, diferentes e espalhados pelo vento, num mundo onde hoje choveu. Passam nuvens no céu da noite, como tempo, como folhas tristes. É uma árvore que vejo daqui, da janela do quarto. A avó costumava vê-la, sentada na varanda.

3.4.05

Viagem à Namíbia (XIII)

Safari - Dia 4 (1)
Aprox. 4,6hrs (270 km)
Acampamento no parque da comunidade
Ova-Himba

Levanto-me novamente às 05:00 antes do sol nascer para um duche fresco. O Burger ficou de nos acordar pelas 05:30, mas já estamos praticamente todos de pé. Tomamos um chá quente (desta vez não há biscoitos) e às 06:30 seguimos para o nosso game drive. Se queremos ver animais terá de ser de manhã cedo, mas com as chuvadas recentes não se encontram muitos. Parece que nesta minha primeira vinda a África não vou poder ver de perto os Big Five – elefante, hipopótamo, rinoceronte, leão e leopardo. Abundam as aves, entre as quais as enormes avestruzes, as gazelas, as girafas e os chacais.

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avestruzes

Uma zebra foi atacada e agora serve de alimento aos chacais, são cerca de 3, que enquanto não se sentirem satisfeitos não permitem que os abutres avancem. Estes espreitam, ansiosos e logo que eles se afastam atacam em todas as frentes, ansiosos, esfomeados, desesperados.

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abutres banqueteiam-se de zebra

Nunca a expressão comer como os abutres fez tanto sentido. Quando voltamos a passar pelo local temos a oportunidade de ver uma hiena que também procura alimento. Esta esconde-se de nós, é demasiado envergonhada, dizem-nos.

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hiena envergonhada

Passadas 2 horas estamos de volta ao acampamento, tomamos o pequeno-almoço, desmontamos as tendas e seguimos viagem.

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aldeia onde nos abastecemos


Abastecemos um pouco adiante e dirigimo-nos à aldeia Himba, onde vamos passar a noite. O dia está quente, muito quente mesmo, aproveitamos para comprar água e colocamo-la na arca frigorífica do autocarro. A aldeia está localizada numa enorme propriedade privada pertencente ao pai do actual chefe da aldeia, Jaco, um jovem branco.

Para lá chegarmos temos de seguir por um longo caminho de terra batida, abrir e fechar cancelas que limitam o gado vacum até ao parque de campismo instalado numa zona privilegiada rodeada de enormes pedras de granito. Logo que saímos do autocarro os viajantes procuram o local mais indicado para montarem a tenda – debaixo de uma árvore, atrás de uma rocha. Pouco habituadas ao calor intenso de África, não ligamos a estes pormenores e o espaço que nos resta não tem nenhuma sombra que nos proteja. A sombra da própria tenda proteger-nos-á nos próximos minutos, nem que tenhamos que andar à volta a fugir dos raios solares.

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parque de campismo Ova-Himba

Montam-se as tendas, estendem-se os colchões à sombra, os homens retiram as T-shirts, abrem-se as cervejas e relaxa-se - parecemos um grupo de pequeno-burgueses em hotel de 4 estrelas na esplanada a meio da tarde. Aproveitamos para lavar alguma roupa, que com o calor intenso que se faz sentir secará rapidamente.

Dentro de uma hora, Jaco virá buscar-nos para passarmos a tarde a visitar a aldeia. O momento de encontro com os semi-nómados Himbas está para breve. Pressente-se no ar algo de novo e extraordinário.