23.7.05

Duende

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Meu duende real que não és meu,
meu chão silencioso e verdadeiro,
por ti tenho sentido não ser mais
o vago sonho humano que antes fui.
Por um gesto que fiz ou que não fiz,
pela palava errada que gritei
ou pelo verso tosco que escrevi,
logo o rigor dos infernos me persegue;
noites desertas, onde os astros passam
na redoma calada dos espaços
e traçam uma falsa astrologia;
ferozes dentes nus, que despedaçam
as imagens doiradas que antes quis;
restos de luz, restos de sombras, nada...

António Franco Alexandre (1944)

15.7.05

Música da alma

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Um espectáculo para sempre - ontem, no Auditório do Ramo Grande, Praia da Vitória, o Quarteto Borodin
com Valentin Berlinsky, no violoncelo - o octogenário que já toca há 55 anos neste fantástico quarteto.

6.7.05

Metal rosicler

Cada palavra uma folha
no lugar certo.

Uma flor de vez em quando
no ramo aberto.

Um pássaro parecia
pousado e perto.

Mas não: que ia e vinha o verso
pelo universo.

CECÍLIA MEIRELES in Antologia Poética

5.7.05

TANTO SILÊNCIO

Para cá de mim e para lá de mim, antes e depois.
E entre mim eu, isto é, palavras,
formas indecisas
procurando um eixo que
lhes dê peso, um sentido capaz de conter
a sua inocência
uma voz (uma palavra) a que se prender
antes de se despedaçarem
contra tanto silêncio.
São elas, as tuas palavras, quem diz «eu»;
se tiveres ouvidos suficientemente privados
podes escutar o seu coração
pulsando sob a palavra da tua existência,
entre o para cá de ti e o para lá de ti.
Tu és aquilo que as tuas palavras ouvem,
ouves o teu coração (as tuas palavras «o teu coração»)?

Manuel António Pina (1943)
in Os Livros

3.7.05

SONETO AMOROSO

Dar sempre chama, sem me desfazer;
após sempre chorar, não me acabar;
após tanto correr, não me cansar;
e após sempre viver, jamais morrer;

depois do mal jamais me arrepender;
de tanto engano, não me desenganar;
depois de tanta dor, não me alegrar;
nunca me rir, após tanto sofrer;

em tantos labirintos, não perder-me,
nem após tanto olvido, ter lembrado
- que fim alegre pode prometer-me?

Antes morto estarei que escarmentado:
já não penso tratar de defender-me,
se não ser deveras desgraçado.

Francisco de Quevedo (1580-1645)
Antologia Poética
(tradução de José Bento)