A Cidade Invisível
De que me serviu ir correr mundo,
arrastar, de cidade em cidade, um amor
que pesava mais do que mil malas; mostrar
a mil homens o teu nome escrito em mil
alfabetos e uma estampa do teu rosto
que eu julgava feliz? De que me serviu
recusar esses mil homens, e os outros mil
que fizeram de tudo para parar-me, mil
vezes me penteando as pregas do vestido
cansado de viagens, ou dizendo o seu nome
tão bonito em mil línguas que eu nunca
entenderia? Porque era apenas atrás de ti
que eu corria o mundo, era com a tua voz
nos meus ouvidos que eu arrastava o fardo
do amor de cidade em cidade, o teu nome
nos meus lábios de cidade em cidade, o teu
rosto nos meus olhos durante toda a viagem,
mas tu partias sempre na véspera de eu chegar.
Maria do Rosário Pereira
Noite em Veneza
Hei-de ir a Veneza no último
barco do crepúsculo. Passearei
na praça inundada um abandono
de sentimentos. Apanharei os frutos
de névoa quando a noite os encher
com o seu peso de inverno. Evitarei
as pontes, os palácios, as pedras,
os percalços dos pombos. Descerei
às caves negras de uma arquitectura
de pó. Abraçar-te-ei nesse chão
de lodo e de limo, penetrando
no ventre da eternidade com os remos
da treva. Perdi o bálsamo adolescente
do sonho. Habito esta Veneza doente:
e junto-me a esses que esperam
que o ponteiro da vida retome
o seu curso no relógio matinal.
Nuno Júdice
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