18.5.06

A sapientiae do nosso Doutor

O nosso colega e amigo Mário Cabral defendeu na passada 4.ª feira, 10 de Maio, na Universidade Clássica de Lisboa, a sua tese de doutoramento intitulada VIA SAPIENTIAE - um trabalho sobre os filósofos Agostinho da Silva, Teixeira de Pascoaes e Delfim Santos.

Ao novel Doutor os nossos parabéns!

Transcrevemos o texto que leu na apresentação da tese:

Filosofias práticas, como são as dos autores que estudei, preocupam-se verdadeiramente com os destinos da comunidade humana, pelo que se pode muito bem concluir que, no fundo, o meu trabalho se enquadra dentro da filosofia social e política.

Esta preocupação refere-se ao sofrimento concreto de alguém com rosto próprio e toca no coração e não tanto na racionalidade. Visa a paz e a alegria da relação fraterna; por isso as minhas palavras-chave são: ACÇÃO, CORDIALIDADE, PORTUGAL, REALIDADE e SANTO.

O outro interpela-me, está à minha frente, não o posso pôr em dúvida ou entre parêntesis, reduzi-lo a uma qualquer indecisão epistemológica; seja ela qual for, a certeza intelectual é sempre mais fraca do que esta interpelação urgente que eu sinto no fundo do meu coração e que me faz verdadeiramente homem.

Perdendo, neste agir corajoso, aquilo que, supostamente, os gregos disseram ser a minha identidade («O homem é um animal racional») acabo por me encontrar na magnificência remota e, ao mesmo tempo, mais futura do meu ser: o meu transcender-me.

Agostinho da Silva tem apontamentos inesquecíveis sobre a caridade, a compaixão e o sacrifício. Insiste na «realidade da fome, na realidade da doença, na realidade do desamparo, que em milhões e milhões de pessoas é a verdadeira realidade do nosso povo»[1]. Mas é a Teixeira de Pascoaes, o poeta, que devemos ir buscar uma peça que sintetiza esta questão:

«Quem pode ser feliz enquanto houver o mal?

Quem pode ser alegre enquanto houver tristeza?

Sorrir, enquanto chora a dor universal?

Cantar, enquanto é um ai profundo a Natureza?

Quem pode ser sereno, enquanto os vendavais

Causam naufrágios, perdições e mortandades,

E enquanto os homens são injustos, desiguais,

E enquanto sobre a terra há só calamidades?...

Desce do etéreo azul, alma bondosa e forte!

És precisa no mundo e não nos altos céus.

Que tu conheças bem a noite, o mal e a morte,

Antros onde não chega o resplendor de Deus!...

Deixa os astros, Amor, e desce aos lodaçais.

Despe a túnica d’oiro, e que teu rosto belo

Fique branco de dor, fique orvalhado d’ais.

Uma lágrima é maior que o sete-estrelo!...»[2]

A alma bondosa e forte que se encontrava no etéreo azul é precisa no mundo. Conhecemos este movimento de longa data: é a descida do filósofo à caverna, lição tão antiga quanto a filosofia. Porém, quantas vezes o filósofo se recusa a descer! É por causa da famosa soberba de muitos filósofos que estes autores parece que desprezam tanto a filosofia.

Mas interessa perguntar se um filósofo que não percorre a via sapientiæ, isto é, que não desce do etéreo céu, será, de facto, um filósofo. Apetece variar a afirmação de Kaufmann em The Future of the Humanities: «A filosofia é demasiado importante para ser deixada nas mãos dos filósofos».

Se for para chamar aparência à fulgurante manifestação do mundo, estes autores preferem não ter nada a ver com a filosofia. São peremptórios ao afirmar que o primeiro contacto com o mundo não é epistemológico, mas sim afectivo. Opõem-se frontalmente a todo o tipo de identificação do ser com o pensar. Têm quase como pecado a transcendência dum sujeito face ao mundo tomado por objecto. Temem a linguagem geométrico-matemática quando esta aniquila a linguagem espiritual, mais persuasiva do que dedutiva, mais simbólica do que conceptual.

Temos, pois, um grande contraste formado entre a razão abstracta e teórica e a vontade livre, que Delfim Santos relaciona directamente com a responsabilidade face ao Outro que está à minha frente. Só há conhecimento investido na e pela acção.

Se o ser humano for definido apenas pela sua racionalidade, ao jeito do positivismo, e se aceitar ficar trancado nela em termos necessários, não há como evitar o escândalo da alteridade. É fácil chegar à violência a partir deste escândalo.

A razão gosta de leis vazias do cromatismo vital e, deste modo, muita filosofia e muita ciência partem do múltiplo para um suposto uno fundamental, caminho ensinado por Parménides, via do ser, ou via do nada, não faz diferença, porque este ser não respira nem tem nome próprio.

Mas a filosofia não tem de seguir fatalmente por esta vereda que aniquila o ser humano e o mundo, ao mesmo tempo. Os três autores, cada um ao seu modo, relacionam este vício com o erro que é considerar a realidade um único bloco homogéneo, quando é evidente que a vida tem princípios explicativos diferentes da matéria, a consciência princípios explicativos diferentes da vida e o espírito princípios explicativos diferentes da consciência.

Desde o Renascimento que o espírito vive subjugado à causalidade e às leis derivadas da utilização do método experimental. Ultimamente, o ser humano também tem sido estudado como se não passasse de um animal como outro qualquer, quando toda a manifestação cultural persiste em evidenciar que uma coisa é um instrumento, outra coisa é uma obra de arte, por exemplo.

Mesmo que este discurso fosse verdadeiro continuaria a ser contraproducente. Se o ser humano não for explicado a partir da liberdade, da vontade, da responsabilidade, da cordialidade, então a vida social torna-se um inferno. Não poderemos responsabilizar o acto imoral e injusto e a lei do «Salve-se quem puder» conduzirá à violência fascista e, no mínimo, ao capitalismo selvagem.

Mesmo que não fosse evidente que a lei verdadeira é a lei do Amor, era mais inteligente optar por ela, como se se tratasse apenas dum postulado que leva mais longe. Uma teoria é tanto melhor quanto testada pela evidência empírica moral e política. Mesmo que possa ser entendida como “ficcional”, é preferível uma ficção que floresce no Bem efectivo do que uma lei científica que conduz ao mal efectivo. Nem tudo o que é racional é razoável, tal como nem tudo o que é possível é desejável. Bem vistas as coisas, reside aqui a passagem da consciência lógico-dedutiva – a velha dianoia – à noêsis: a metanoia.

Segundo Agostinho da Silva, esta é a passagem da realidade captada (percepcionada, à maneira epistemológica tradicional) à realidade que brota (a realidade criada metafisicamente). E, com a graça etimológica do costume, acrescenta: esta é a diferença entre a metanoia e a paranóia, entre a loucura do santo e a razão que a si própria se enclausura e enlouquece. Não há conhecimento verdadeiro se não for moralizado, politizado, comprometido, humanizado.

O saber que nasce do espírito é que enforma a ciência e nenhuma dita “objectividade” é superior a esta vontade livre. A consciência precisa de uma definição prévia do sentido, que só lhe pode vir do espírito. O sentido funciona como uma crença, entendido como postulado necessário para a acção.

Os três autores que estudei consideram o santo como o ideal de humanidade. Poderá o filósofo ser santo? Não é preciso que seja, insiste Agostinho da Silva, precisamente o mesmo autor que é o maior apologeta do sacrifício. Este ponto é de elevada importância numa tese de filosofia.

É possível chegar à santidade sem a filosofia; porém, que disciplina, melhor do que a filosofia, pode destrinçar os falsos saberes da Verdade, analisando, com aquela cientificidade exigida por Agostinho da Silva, a linguagem equívoca, o reducionismo das propostas, o perigo das consequências reais deste ou daquele princípio teórico?

A filosofia tem um papel essencial na correcção dos flagelos enumerados no poema de Teixeira de Pascoais que acabei de citar; e filosofia rigorosa, analítica, feita com linguagem e método científicos, sem contemplações literárias.

E é neste contexto que Delfim Santos chamará à Faculdade de Letras a Casa da Cultura e ao curso de Filosofia a melhor ferramenta para salvar as Humanidades, no seu conjunto, da sua queda abissal, a que estamos a assistir, no cepticismo e no relativismo. É dele, aliás, a melhor definição de espírito: equilíbrio entre a razão, a vontade e o coração.

Não é preciso que o filósofo seja santo, embora custe a aceitar que a razão não se abra ao espírito, que a dianoia não dê o salto para a noêsis, que o cientista não dê lugar ao sábio. O sábio já vive um estado de sôphrosynê muito próximo da contemplação mística. Teixeira de Pascoaes refere-se quase sempre a este santo estóico que se consola nas alturas rarefeitas do etéreo céu; mas termina, como vimos, por compreender que o mártir é o santo por excelência, na medida em que tudo sacrifica à lei inalienável da compaixão.



[1] 424.

[2] 312/313.

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