24.4.04

Pensão Graciosa (5)

Desconheço como se chamam os novos donos nem que uso lhe vão dar. Passei uma vez por lá e vi sinais de obras – materiais de construção que entravam, entulhos que saíam, madeiras podres que eram substituídas por novas, rasgos no chão para canalizações. Perguntei a um dos mestres, como quem não quer a coisa, muito trabalho? Ao que ele me respondeu, é, ao princípio não parecia muito, mas quando se começa a mexer, cada vez aparecem mais coisas. Insisti, o Sr. Serrão vai mudar-se para cá? Sr. Serrão? Surpreendeu-se, deve estar enganada, a dona não tem esse nome. Percebi, a casa tinha sido vendida. Admirava-me que eles fizessem obras, pois, enquanto lá estive, inquietei-me para me retelharem a casa, que todos os Invernos metia água, devido aos malditos dos gatos que iam lá para cima revirar nas telhas.
Voltei a passar pela rua, acho mesmo que o fiz de propósito, e deparei com o mesmo movimento, vi a porta aberta e apeteceu-me entrar, recuei, achei que não devia, já não era a minha casa, já não pagava renda por ela, mas a curiosidade era muita. E se eu entrasse? Poderia sempre arranjar uma desculpa, dizer que ia pedir areia para os gatos, que o que vendem por aí nas lojas sai muito caro a uma viúva como eu, com uma pensão de miséria; talvez não estivesse lá ninguém, era hora de almoço, poderiam ter ido ao café. Espreitei. Entrei, sorrateiramente. O mesmo saguão, os mesmos degraus, a mesma madeira no chão. Quantas pessoas já subiram e desceram por estas escadas?

Sim. Quantas? Quantas pessoas usaram o desgaste da madeira, que consome estes degraus? Quantas e quem e quando?
Pergunto-me se haverá ainda por aqui sombras com nomes e com idade; se o tempo tem a mesma demora em todas as casas, em todos os vultos e se em tudo deixa as mesmas marcas.
Mas não. Parece-me que o tempo é original em todos os lados; que as rugas com que me castigou são diferentes da morte que deu ao gato da vizinha e nem é necessário voltar à minha infância para saber que a vida me passou com uma rapidez diferente daquela com que passou pela minha irmã – mulher de sorriso sem bolor; mulher que corre nos círculos dos netos usando gargalhadas tão estridentes como as deles.
Sempre invejei o brilho da pele com que a minha irmã recebia os beijos estridentes de toda a família, enquanto eu passava despercebida, rente aos folhos vistosos do vestidos modernos que a minha mãe lhe fazia, durante a noite, com a pálida luz dum candeeiro que cheirava a petróleo.
E aquele cheiro fazia-me mal, porque eu não sabia que se chamava inveja.
Mais tarde, quando o sol já lhes tinha comido a cor, passavam para mim e ficavam-me sempre curtos ou apertados ou feios – os vestidos da minha irmã.
Também as conversas que ela tinha, eram levadas para o pátio, onde os adultos se reuniam depois do jantar e enquanto eu esfregava pratos gordurosos, escutava os elogios que surgiam em voz alta, como se o mundo todo rodasse à volta das tolices que a minha irmã fazia. E rodava. Rodava tanto como as saias que o vento lhe libertava das pernas bem feitas. Rodava o mundo e rodava a família.
Eu é que dançava sozinha no escuro da noite e chorava e sofria ao som da alegria das minhas primas e de todos. De todos sempre juntos, longe de mim.
Chorava e ainda choro e às vezes grito nomes fortes, feitos de raiva, sem perdão.
Grito os mesmos nomes que os outros me chamavam, quando trancada na infância, recolhia mágoas ferozes, que fizeram da minha memória um monte de destroços irreparáveis.
Um monte de destroços é esta casa por onde agora passo.
Parece-me que inventaram outros quartos no rés-do-chão. Agora há mais. Pedra e terra e pó, é o que enche o passeio. Uma nuvem escura sai pelas portas abertas. Uma nuvem dura. Muscular.
Sinto-me tentada a entrar. A abrir os cadeados da juventude que aqui passei. Os cadeados deste abrigo que me deu colo às feridas da infância. Esta casa cofre forte. Estas paredes de fantasmas quase afagáveis. Este ninho que me deu história. Esta minha vida. Esta minha vã alegria...

Subo devagar, degrau a degrau. Deparo com as ainda visíveis marcas dos meus filhos: jogos do galo arranhados no chão, riscos na parede para medir a altura, nomes das namoradinhas da escola primária… Tudo me parece tão vivo nesta casa! O cheiro a bolas de naftalina jamais desaparecerá destas paredes húmidas. Ando pelo corredor e vejo de olhos fechados tudo no mesmo lugar: os quadros, as fotografias da família (ainda unida) os móveis…
Foram tantos os anos aqui vividos que não os posso apagar assim da memória. Olho para a janela, donde vejo o quintal do senhor Martins. Não deve também ele morar mais ali, pois já não vejo as ferramentas, nem as tábuas de madeira que usava para construir os brinquedos que tanto entusiasmavam os miúdos da cidade.
Entro no meu antigo quarto, onde de real nada sobra. Algo me empurra a abrir o armário da dispensa e, para meu espanto, lá está o espelho. Arrasto-o para o lugar, com certa dificuldade, devido à minha fraqueza de viúva; não sei o que faço. Olho-me, mas não é o meu corpo que está ali, antes o da jovem que fui, o da jovem que viveu naquele quarto. Os espelhos são espiões, vigiam tudo, guardam tudo, duplicam as nossas vidas. Eis que entra pelo meu quarto dentro o meu filho de quatro anos para beijar o seu irmão, escondido dentro do meu corpo, por enquanto. O já falecido dorme ainda na cama, como se já estivesse morto, como se ainda estivesse vivo. Só o espelho conheceu o meu amante. Sorrio à imagem dele a saltar pela janela, quando o falecido ia à Graciosa ver a família ou tratar de assuntos burocráticos das heranças, dos terrenos e mais terrenos… coisas de herdeiro. Amávamo-nos no mais puro silêncio da noite em frente àquele eco do nosso amor. E o eco repercute agora em mim a nostalgia… espelho, espelho meu, em ti meu corpo se foi desfigurando gravidez a gravidez, cinco, para só dois sucessos machos.
Senhora? O que faz aqui? Ah, desculpe, e eu, eu… Eu vim saber se tinham areia para os gatos e como ouvi ruídos cá em cima atrevi-me a subir. Com uma delicadeza subtil, respondeu: Sim, claro, venha comigo que tenho areia acabadinha de ser passada pelo joeiro. Saiu sem sequer reparar no espelho, eu assustada que visse nele aquilo que ele me revelava. Segui-o pelo corredor e quase tropecei no mesmíssimo taco levantado no mesmíssimo lugar, o mesmo que ceifou a vida da minha nora mais nova. Corro, então, pelas escadas abaixo e saio em pânico daquela casa assombrada, fujo do meu passado, fujo de mim.
Ainda ouço atrás de mim: Senhora? Aqui tem a areia para os seus gatinhos… Senhora? Onde está? João, viste a mulher que estava comigo? Mulher, eu?! Quem me dera!

Tem a certeza que nunca ninguém lhe referiu este facto? Claro que tenho. E agradeço-lhe que pare com esta história. Isto pode dar-me cabo do negócio. E, no entanto, vejo-a todas as noites. Acordo com a sensação de que alguém me observa. E há aquele perfume…Da primeira vez gelei de horror; depois fui-me habituando e, se quer que lhe diga com muita sinceridade, acontece-me esperar, lendo, pela hora exacta em que se revela: três da madrugada, ao tocar do relógio da Sé. Atravessa a porta, levitando. Tem um vestido branco, à moda do princípio do século passado. É alta e morena e fala, fala, fala… só que não consigo ouvir o que diz. Sorri. Insiste para que a entenda. Mostra-me a mão esquerda. Então, desistindo, vira-se de perfil e compreendo que está grávida. Marca o seio com ambas as mãos, uma por baixo e outra por cima, olhando-me de frente. Acaba por sair, desiludida por não a ter compreendido. Tem a senhora alguma ideia de quem seja? Diga-me o senhor uma coisa: traz aliança? Claro!, é isso! Como é que não cheguei lá sozinho? Não tem aliança! Mãe solteira!
Emília. O nome dela é Emília. Da Graciosa. Morreu antes de ser mãe. Está proibido de contar esta história seja a quem for! Quer que o mude de quarto? Nem pense nisso! Insisto, não se acanhe! Por quem é! Não desisto enquanto não descobrir o que me tem para contar. Acredita em fantasmas? Acredita que vêm pedir auxílio aos que permanecem vivos? O que eu acredito é que seria muito mais razoável que se deixasse desta maluqueira. Faça-me este favor, não me desgrace.


Manuel Oliveira era um homem abastado e exacerbadamente metódico, qualidade esta rara naquela época. Sempre que regressava sozinho à sua terra natal, a Graciosa, para resolver os assuntos das heranças, tentava arranjar maneira de se encontrar com Emília, uma jovem pobre e muito formosa. Era de uma beleza natural e delicada. Não se sabe se o que mais o encantava naquela moça era a subtileza da sua figura esbelta ou o facto de sentir prazer ao transgredir as normas sociais. A verdade é que se amavam apaixonadamente pela noite dentro, com a esperança de retardar o mais possível o amanhecer de um novo dia, em que tinham de se afastar um do outro para não esmagarem a hierarquia social.

Mas diga-me. Por favor, peço-lhe! Prometo não contar a ninguém. Não tenho intenção nenhuma de lhe prejudicar o negócio. Pode ter a certeza. Trata-se de mera curiosidade.
Não insista. É um segredo de família. Prometi não contar a ninguém.


Mas percebo tão bem o que sente. Nem imagina – pensou ela. Há uns anos, quando me instalei nesta casa, também era surpreendida por Emília nos meus sonhos. Por vezes, ela parecia-me tão real que eu costumava acordar a meio da noite a imaginar-me na Graciosa quando visitava a minha prima e ela vinha servir-nos o chá, acompanhado das tradicionais queijadas deliciosas. Confesso que Maria Augusta a tratava muito mal… Fazia dela sua escrava e a moça obedecia-lhe sem pestanejar, mesmo quando estava perto a dar à luz e mal se arrastava pela casa. No entanto, era Emília que cozinhava para toda a família e limpava o pó. Pobre mulher! O destino foi-lhe ingrato e, ainda hoje, é com lágrimas nos olhos que me recordo daquela humilde e pura donzela.

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