Um soneto de Florbela
Um dia, num café, ouvi uma mulher dizer
o poema de Florbela Espanca que começa «Eu quero amar,
amar perdidamente...»; e enquanto ela o dizia, eu
tentava ouvir na sua voz a voz de Florbela. Mas essa mulher
tinha a voz rouca, o que talvez se
devesse ao facto de ser professora,
e ter de gritar nas suas aulas, de manhã, para
que os alunos a pudessem ouvir. Nesse tempo de inverno, e
de turmas grandes, era preciso forçar a voz para
que o degelo se fizesse, e as crianças entrassem
nos números e na gramática. Por isso, a mulher
que dizia o poema de Florbela
fazia com que fosse, ela própria, o
poema de Florbela. E é assim, ainda hoje que o ouço:
dito, numa antiga tarde de inverno, por uma mulher
que o recitava como se estivesse a
ensinar um bê-a-bá da vida a quem, no café, não esperava
ouvir, entre a leitura do jornal e a conversa em voz baixa,
a mais elementar das verdades. O desejo de amar,
amar perdidamente, como Florbela, numa perdida esquina
da memória.
Nuno Júdice
in Cartografia de Emoções
O poema é para ver-se
ler-se
(às vezes ouvir-se)
mas
sobretudo
adivinhar-se
o poeta é
uma sombra
um perfil
um desaparecimento
mas
sobretudo
a despedida mão feita poema
HATERLY, Ana
in O Cisne intacto; outras metáforas
Catorze versos
"Soneto nunca foi boa poética"
catorze versos são uma prisão
e monótona é sempre a mesma métrica
soneto nunca foi grande invenção.
Mas em soneto Guido conversou com Dante
catorze versos da Toscana e neles estão
o amor eterno e a eternidade do instante
do soneto nasceu uma nação.
Outra é a música da fonte de castália
catorze versos são monotonia
sem épica nem harpa nem canção.
Do soneto nasceu talvez Itália
dai-me de novo o mar e a nostalgia
catorze versos são uma prisão.
Manuel Alegre
in Obra poética
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